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iv. ou dois — cu & sexo

o literal e o literário

 

literal

n adjetivo de dois gêneros

 

1 que reproduz exatamente, palavra por palavra, determinado texto ou trecho de um texto

2 conforme ao próprio e genuíno significado das palavras, por oposição ao seu sentido figurado; exato, rigoroso

3 expresso por meio de letras do alfabeto

4 Rubrica: termo jurídico. diz-se de prova que se produz por meio de documento autêntico e que mereça fé

 

literário

n adjetivo

1 relativo a literatura

2 diz-se de indivíduo cuja atividade profissional está ligada à literatura

3 que constitui uma análise e apreciação de obras de literatura

4 que revela aptidão, inclinação para a literatura

5 que possui certas características linguísticas e semânticas que identificam as obras de literatura

6 relativo aos conhecimentos adquiridos pelo estudo, pela leitura

7 diz-se do direito de propriedade de um autor sobre as suas obras

8 Derivação: sentido figurado. que dá uma imagem artificial da realidade

fonte: dicionário houaiss da língua portuguesa, 2009

das letras, sou puta, e também cafetão. vendo minha capacidade de agenciá-las, mobilizo toda uma rede de vocabulários, perambulo pelas ruas dos dicionários procurando palavras-alvo, coloco-as sordidamente amarradas umas às outras, convenço aqueles que têm grana a aceitá-las e prometo mundos e fundos – as curvas obscenas de um s, a volúpia de um b ou de um m, a promessa que pode conter um u, todo e qualquer fetiche tem vez. às vezes é só um boquete bem em conta (press release institucional), uma simples punhetinha (legendas de curta duração), noutras uma bela enrabada (a boa literatura), fantasias sexuais impronunciáveis que demandam um banho vigoroso em seguida (autoajuda, publicidade), arreganhar-se feito estrela do mar gemendo aqui e ali para manter o moral nas alturas mesmo que o estado de espírito seja o de alguém que boceja enquanto lixa as unhas (papo-aranha conceitual de curador de exposição) ou só bancar o terapeuta e terminar com uma foda convivial (conteúdo banal de velhos clientes que pagam bem). tem um pouco de tudo, é um comércio no fim das contas. sempre me perguntam se tenho prazer com meus clientes e é claro que sim, mas nem tão frequente assim. em todo caso, é trabalho. tem que gostar e saber separar bem as coisas.

 

 

as letras me fazem de refém. recebo um texto, abro o documento e, muito rapidamente, de aspecto a princípio inofensivo, elas começam a me cercar e colocar suas grades. elas estabelecem um contexto cuja escolha de não respeitá-lo me é negada. começa a acontecer, então, uma desavença silenciosa, um cabo de guerra em que um lado, o meu, tenta esticar toda e qualquer flexibilidade ao máximo, na tentativa de cobrir significados às vezes vastos demais, noutras muito estreitos, ou ainda sem nenhuma correspondência de uma língua a outra. insisto feito um cão que se esquece da extensão da coleira e, de repente, se vê fisgado pelo pescoço, obrigado a se contentar com suas fronteiras e limitações. não é tão frequente, mas às vezes acontece de conseguir desestabilizar o texto. ele sente o golpe, eu me ponho a latir meus comentários e recebo de volta seu olhar de carrasco, para não deixar dúvidas sobre quem controla quem, seguido de alguns quitutes complacentes, que engulo quase sem mastigar, incapaz de me conter.

 

 

felizmente que o regime é semiaberto, cabe a mim escolher os horários de banho de sol e de saída. então me ponho bela, de prisioneira a fugitiva, uma sede de vida de quem não viu o mundo lá fora há algum tempo e tenta não deixar entrever o mofo em metástase por toda a superfície de sua conduta social. vou passeando e enganando a mim mesma ao máximo, até que num determinado momento a realidade se impõe ponto as placas que sinalizam o tráfego contêm textos vírgula a mesma coisa vale para os avisos de elevador vírgula os recados deixados pelos vizinhos vírgula as embalagens de alimentos ou uma lista de compras esquecida entre as caixas de ovos vírgula os sms promocionais vírgula livros abandonados ou esquecidos nalgum canto travessão eles saem sem parar das bocas na rua vírgula não sei mais o que fazer dessa zoeira ponto em todo lugar me vejo procurando erros de ortografia vírgula espaços duplos vírgula problemas de concordância vírgula mas também belas construções vírgula novas palavras para compor meu repertório ou para resolver um imbróglio do texto que precisa ser entregue na próxima terça ponto sufocada vírgula começo a deglutir a pontuação atônita e maravilhada por tudo aquilo que é texto e tudo é texto não consigo mais aguentar esse excesso de realidade começo a correr

 

 

fiel, acometido por essa síndrome de estocolmo e bastante consciente desse fato, volto sorrindo, a língua dependurada, sem saber muito bem por quais linhas acabei passando durante essa fuga. traficante de significados? depois de um percurso de prostituto, operário, cão, vaca, galinha, prisioneira e fugitiva, adolescente que escreve um diário açucarado usando um lápis com pompom, precarizado, dicionário ambulante, voz oculta, timbre imponente, espectro do texto de outrem, cúmplice e culpado e assim por diante, a imagem de um filtro ou de uma peneira não faz justiça ao conjunto dessas camadas de performatividade mais ou menos subterrâneas. o corpo se encontra aí integralmente, sempre tentando encarar cada tentativa como um novo ponto de partida – e uma diversa espécie de fracasso, completa o eliot.

et cetera et cetera et cetera

este texto faz parte

da publicação e performance

horror vacui

iv. ou deux — cul & sexe

le littéral, le littéraire

littéral, ale, aux

adjectif

 

1. Qui utilise les lettres. Notation littérale. / ▫ Qui est représenté par des lettres. / ◆ Ling. Qui procède lettre à lettre. ➙ exact, textuel.

2. Qui suit un texte à la lettre. ➙ textuel.

3. Qui s'en tient, est pris strictement à la lettre. ➙ propre. Par métaph. Rapporté exactement, objectivement. ➙ brut.

4. Qui s'appuie sur un écrit.

■ contraires : Figuré, symbolique.

 

 

littéraire

adjectif et nom

 

1. Qui a rapport à la littérature / ◆ Qui étudie les œuvres, qui traite de littérature. / ◆ Qui convient à la littérature, répond à ses exigences esthétiques. ➙ littérarité. / ◆ Qui ne se trouve que dans la littérature. ▫ Péj. Artificiel, manquant de sincérité.

2. Doué pour les lettres.

3. Qui est consacré aux lettres.

 

 

source  : le petit robert de la langue française, 2014.

 

des lettres, je suis une pute, et aussi leur mac. je vends ma capacité de les agencer, je mobilise tout un réseau de vocabulaires, je déambule dans les rues des dictionnaires en cherchant des mots-cibles, je les mets sordidement les uns attachés aux autres, je convaincs ceux qui ont de la tune à les accepter et je leur promets monts et merveilles – les courbes obscènes d’un s, la volupté d’un b ou d’un m, la promesse qui peut contenir un u, tout fétiche a sa place. parfois juste une pipe pas chère (press release institutionnel), une simple branlette (soustitres de courte durée), d’autres un bel enculage (bonne littérature), des fantasmes sexuels imprononçables qui demandent une douche vigoureuse après (développement personnel, pub), juste faire l’étoile de mer en gémissant ici et là pour faire monter leur moral quand l’état d’esprit est celui de quelqu’un qui lime ses ongles en bâillant (vadrouille conceptuelle de commissaires d’expo) ou juste faire le thérapeute et finir en baise conviviale (contenu anodin de vieux clients qui paient bien). il y a un peu de tout, c’est du commerce, au bout du compte. on me demande souvent si j’ai du plaisir avec mes clients, et bien sûr que oui, mais pas si souvent que ça. en tout cas, c’est du taf. il faut l’aimer et savoir bien séparer les choses.

 

les lettres, elles me font d’otage. je reçois un texte, je l’ouvre et, très rapidement, à l’air d’abord inoffensif, elles commencent à m’encercler et posent ses barreaux. elles établissent un cadre dont le choix de ne pas respecter m’est refusé. il commence à avoir lieu, donc, une bagarre silencieuse, un tir à la corde où un côté, le mien, essaie d’étirer toute souplesse à son maximum, dans la tentative de couvrir des significations parfois beaucoup trop vastes, d’autres par trop étroites, ou encore pas du tout correspondantes d’une langue à l’autre. j’insiste tel un chien qui oublie l’extension de sa laisse et, soudain, se voit tiraillé sur le cou, obligé à se contenter de ses frontières et limitations. ce n’est pas fréquent, mais il arrive des fois où je le déstabilise, le texte. il sent le coup, j’aboie mes commentaires et je reçois en retour son regard de bourreau, pour ne pas laisser de doutes quant à qui contrôle qui, suivi de quelques gourmandises en complaisance, que j’avale presque sans mâcher, incapable de me contenir.

 

heureusement que le régime est semi-ouvert, c’est à moi de choisir les horaires de bain de soleil et les sorties. je me fais belle, alors, de prisonnière à fugitive, une soif de vie de qui n’a pas vu le monde extérieur depuis un moment et essaie de ne pas laisser entrevoir la moisissure répandue sur ses conduites sociales. je me promène et me trompe moi-même au maximum, mais à un moment donné la réalité s’impose point les panneaux de trafic contiennent des textes virgule pareil pour les affiches d’ascenseur virgule les mots laissés par les voisins virgule les emballages d’aliments ou une liste de course oubliée parmi les boîtes d’œufs virgule les sms promotionnels virgule des bouquins abandonnés ou oubliés quelque part tiret ils sortent sans arrêt des bouches dans la rue virgule je ne sais plus quoi faire de ce brouhaha point partout je cherche des fautes d’orthographe virgule des espaces doubles virgule des problèmes d’accord virgule mais aussi des belles constructions virgule des nouveaux mots pour composer mon répertoire ou pour résoudre un imbroglio du texte à rendre mardi prochain point étouffée virgule je commence à déglutir la ponctuation abasourdie et émerveillée par tout ce qui est texte et tout est texte je ne peux plus tenir à cet excès de réalité je me mets à courir

 

 

fidèle, assailli de ce syndrome de stockholm et très conscient de ce fait, je reviens souriant, la langue qui penche, sans savoir très clairement par quelles lignes suis-je passé pendant cette fugue. passeur de significations ? après un parcours de prostitué, ouvrier, chien, vache, poule, prisonnière et fugitive, adolescent qui écrit son journal mielleux muni d’un crayon à pompon, précarisé, dictionnaire ambulant, voix cachée, timbre imposant, spectre du texte d’autrui, complice et coupable, et ainsi de suite, l’image d’un filtre ou d’une passoire ne rend pas justice à l’ensemble de ces couches de performativité plus ou moins souterraines. le corps s’y retrouve intégralement, toujours en essayant de prendre chaque tentative comme un nouveau point de départ.

 

 

et cetera et cetera et cetera

ce texte fait partie

de la publication et performance

horror vacui

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