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nalgum lugar

qq part alguém

qqn faz algo

fait qqch

[geste de démarrage]

ver com meus próprios olhos

—uma visita a florença

 

eu poderia falar da minha surpresa, no primeiro dia e pela primeira vez na itália, de me ver num país cuja língua desconheço, constatação tão simples quanto reviravoltesca, que não tinha me acontecido há muito tempo; do abalo quando vi o domo gargantuesco da igreja de santa maria del fiore por acaso, enquanto procurava um café tal que tinham me recomendado – seria pesar um pouco a mão de um caso de síndrome de florença em florença, me parece; da surpresa de número dois quando encontrei um por do sol que misturava todas as cores quentes de uma só vez sobre o arno, de uma beleza acachapante; da experiência reduzida e insuficiente de estar ali por meros três dias, dois e meio na verdade, sempre espremido pelo calendário; da concentração absurda de turistas e do consumo selvagem que isso representa, do qual não estou isento; do fato de não ter podido visitar a maioria das obras e monumentos mais conhecidos por causa da infinidade de cabeças e o caráter repulsivo que vem junto, além da minha falta de organização; entre mil outros assuntos, mas:

 

cisco

 

um bilhete de entrada comprado na antevéspera, pois sem isso você se vê obrigado a passar horas e horas na fila para vistar o que quer que seja, o horário se aproxima e… começa a chover. um presente modesto, na verdade, porque a água caindo do céu obriga a multidão a se acalmar, apaga seu fogo rapidamente. a desculpa perfeita pra um café e algo açucarado alegando servir de preparação. estômago satisfeito e guarda-chuva na mão, vou andando até a igreja. mesmo bastante espalhafatosa, a chuva tinha durado só uns quinze minutos, o suficiente para que a fila interminável se dissolva. quase uma pena, anuncia um pensamento mesquinho, tirando o prazer sádico do pequeno poder comprado de ultrapassar as pessoas desprovidas de um bilhete de entrada que esperariam indefinidamente. enfim. lá estava eu, às exatas catorze horas com trinta minutos, conforme indicado, parando um pouquinho antes para observar mais uma vez a arquitetura e iconografia externas da igreja, sua fachada bastante trabalhada, mas não as laterais, o que lhe confere um aspecto dúbio meio engraçado quando, naquele exato instante, não se sabe muito bem como – uma ventania? o contato dos dedos sujos? a hiperconsciência? a boa e velha autossabotagem? uma vespa-do-figo? – nem por quê – alerta divino? ironia do destino? stendhal enfiando o dedo no meu olho? – mas um cisco se introduziu no meu olho. se era o direito ou o esquerdo, não consigo me lembrar. contudo, a partir do momento em que me encontrei diante da igreja que está na gênese da síndrome em questão, para ver com meus próprios olhos do que se tratava, uma viagem feita quase que exclusivamente para isso, tinha uma coisa no meu olho. ele estava incomodado, irritado pela presença desse objeto estranho e inesperado em contato ao mesmo tempo com a pele e a superfície lisa, molhada, bastante sensível e irrigada por muitos vasos sanguíneos do globo ocular, que faz pensar na delicadeza da gema do ovo, sempre à beira de se romper. o tipo de situação que não é possível simplesmente deixar de lado, um microcorpo que, depois de se fazer notar, se amplia irremediavelmente, assumindo o tamanho e impacto do movimento de um dinossauro indomesticável, exceto que microscópico e invisível, e bem no olho, o que me obrigava a rir um pouco de mim mesmo. chego ao ponto de controle da entrada para mostrar que, não, não estou armado, e não, a sintomática garrafa d’água não contém explosivos, ao mesmo tempo em que, todo desengonçado, eu ia arrumando fones de ouvido, documento de identidade, bilhete comprado antecipadamente na tela do telefone, aumentando a luminosidade de fundo pra que a maquininha consiga ler o código de acesso, tudo isso embalado num balbucio de italiano precário e de inglês, e de um olho todo vermelho que era visitado de tempos em tempos pelos dedos nervosos, dando ao rosto o aspecto de se debulhar em lágrimas, mas de um lado só. lá vou eu igreja adentro, um contexto majestoso e religioso. finalmente. eu, sedento. quatrocentas e não sei quantas tumbas e esculturas ostentando seus respectivos defuntos importantes, a estrutura de vigas de madeira que suporta o teto com uma riqueza de detalhes inacreditável, os relevos e placas e imagens que cobrem todo o chão em certo despudor, as eventuais barreiras protegendo partes específicas da curiosidade desdenhosa dos turistas, e ainda alguns fiéis rezando suas convicções. tudo isso e mil outros universos a serem descobertos – com um troço que impedia o funcionamento habitual de um olho. fingi, então, que não era comigo, passei a ignorá-lo. vinte metros percorridos, algumas imagens observadas… cacete, tá coçando. um cartaz lido, mais vinte metros e… aaaaaaargh. chega, não aguento mais, começo a enfiar o dedo no olho, certo de saber onde se encontra esse negócio, mas a superfície é escorregadia. tento de novo. não sendo um orifício habituado a receber dedadas assim, ele reage mal, o olho, e reagem mal também eles, os outros, principalmente os seguranças. tá bom, vou ao banheiro. pra daí descobrir que era preciso atravessar tudo antes de chegar lá, uns duzentos, trezentos metros com os dedos incontinentes abusando do olho. lá chegando, paro diante do espelho, estico a pele de baixo com a ajuda do dedo médio da mão esquerda e enfio o indicador da mão direita de um jeito ainda mais estabanado, porque desta vez escrutinado em ação. essa espécie de autoagressão segue seu curso por alguns minutos, com passantes me observando antes e depois de sua atividade na privada. o corpo estranho não retirado, sequer localizado, e no entanto sua presença continuava ali bastante perceptível. eu largo mão. duzentos, trezentos metros para voltar à visita dessa que é a maior igreja franciscana do mundo. o olho continua incomodando, mas um pouco menos agora com o frenesi ligeiramente reduzido e o rosto limpo. continuo minha visita. três horas e meia lá dentro, que me permitiram de fuçar um bom bocado do que há dentro da igreja com o suporte de um olho substituto, a câmera fotográfica. um quase tombo andando pra trás, sessenta fotos e uns vinte minutos de vídeo – em claro exagero das capacidades tecnológicas – para confirmar os clichês da representação feminina e descobrir ali a imagem de três mulheres que fugiam à regra – a saber: salomé, que recebe a cabeça de joão batista numa bandeja; a liberdade da poesia, que teria inspirado a estátua da liberdade de nova york alguns anos mais tarde; e uma terceira, não identificada, que se apresenta como se estivesse sendo imobilizada por dois homens, com o corpo inclinado para trás e os braços segurados nas costas. mas já? os guardas da igreja, com uma disposição nada negligenciável de fim de jornada de trabalho dominical, começam a expulsar o público num esforço conjunto e coordenado, iniciado pelas extremidades. vou zanzando e evitando-os fazendo uso da minha melhor descontração nada ocasional, com o cisco ainda no olho. como presente de despedida, enquanto impediam os visitantes até mesmo de dar um último pulo no banheiro, os sinos começam a soar as horas. pouco a pouco, todo mundo vai dando as costas para a entrada, ficando de frente para as torres onde eles se encontram, a música preenchendo o espaço do jardim lateral com uma força sutil sem igual. penso em fazer uma dança que reproduz as imagens do interior, respeitando os batimentos das horas pra mudar ou evoluir nas posturas. uma belíssima ideia na hora, que logo em seguida já parece ser sacralizada por demais. ao sair da igreja, parado mais um instante na frente, talvez em busca de encontrar alguma coisa que se escondia diante dos meus olhos na fachada… onde foi parar o tal do cisco? observo em volta, pisco os olhos em teste, as pálpebras insistem e o globo se mexe em todas as direções. foi-se embora.

voir de mes propres yeux

—une visite à florence

 

je pourrais parler de ma surprise, le premier jour et pour la première fois en italie, de me voir dans un pays dont je connais pas la langue, un constat autant simple que bouleversant, qui ne m’était pas arrivé depuis longtemps ; de l’étonnement quand j’ai vu le gargantuesque dôme de santa maria del fiore par hasard, lorsque je cherchais juste un café spécifique qu’on m’avait conseillé – ce serait un peu forcer la main d’un cas de syndrome de florence à florence, à mon avis ; de la surprise numéro deux quand j’ai retrouvé un coucher du soleil qui mêlait toutes les couleurs chaudes d’un coup sur l’arno, d’une beauté époustouflante ; de l’expérience réduite et insuffisante d’y être que pendant trois jours, deux jours et demi même, toujours coincé par le calendrier ; de la concentration absurde de touristes et de la consommation sauvage que ça représente, de laquelle je ne suis pas exempt ; du fait de ne pas avoir visité la plupart des œuvres et monuments les plus reconnus à cause de la multitude de têtes et le caractère répulsif que ça entame ; et mille autres sujets, mais :

 

cisco

 

un ticket acheté l’avant-veille, car sans ça on est obligé à passer des heures et des heures à faire la queue pour visiter quoi que ce soit, l’horaire s’approche et… commence la pluie. un petit cadeau, en fait, puisque l’eau qui tombe du ciel oblige la foule à se calmer, éteint son feu très rapidement. la bonne excuse pour un café et une sucrerie en guise de préparation. estomac satisfait et parapluie à la main, je marche jusqu’à l’église. même si très bavarde, la pluie n’avait duré qu’une quinzaine de minutes, le suffisant pour que l’immense queue se soit dissoute. presque dommage, annonce une pensée mesquine, en enlevant le plaisir sadique du petit pouvoir acheté de dépasser ceux dépourvus de ticket qui attendaient indéfiniment. bref. j’y étais pile à quatorze heures plus trente minutes, comme indiqué, en m’arrêtant un petit peu avant pour observer encore une fois l’architecture et l’iconographie extérieures de l’église, sa façade très travaillée mais pas sur les côtés, ce qui lui confère une drôle de double allure. à cet instant précis, on ne sait pas comment – un coup de vent ? le contact des doigts sales ? de l’hyperconscience ? le bon et vieux autosabotage ? un emblématique blastophage ? – ni pourquoi – alerte divin ? ironie du destin ? stendhal qui dans mon œil enfonçait sa main ? –, mais un cisco, ou sa version française et moins précise, une poussière, s’est introduit dans mon œil. droit ou gauche, je n’arrive pas à m’en rappeler. toutefois, depuis le moment où je me suis retrouvé devant l’église qui est à l’origine du syndrome en cours, pour voir de mes propres yeux ce de quoi il s’agissait, un voyage fait presque exprès pour ça, j’avais quelque chose dans l’œil. il était gêné, dérangé par la présence de cet objet étrange et inattendu en contact à la fois avec la peau et la surface lisse, mouillé, très sensible et irriguée par plein de vaisseaux sanguins du globe oculaire, ce qui fait penser à la délicatesse du jeune d’œuf, toujours au seuil de se rompre. le genre de chose qu’on n’arrive pas à laisser de côté, un microcorps que, une fois qu’il se fait noter, se magnifie irrémédiablement, prenant la taille et l’impact du mouvement d’un dinosaure inapprivoisable, sauf que microscopique et invisible. bien dans l’œil, ce qui m’obligeait à rire un peu de moi-même. j’arrive au contrôle de l’entrée pour montrer que, non, je ne suis pas armé, et non, la symptomatique bouteille d’eau en plastique ne contient pas d’explosifs, en même temps que, maladroitement, je rangeais écouteurs, pièce d’identité, billet acheté sur l’écran du portable, plus de lumière de fond pour que le machin puisse lire le code, le tout emballé d’un balbutiement d’italien précaire et d’anglais, et un œil tout rouge qui se faisait visiter par les doigts nerveux de temps en temps, donnant au visage l’aspect de s’effondrer en larmes, mais que d’un côté. j’y rentre. un cadre majestueux et religieux. enfin. moi, assoiffé. les quatre-cents et quelques tombes et les sculptures en ostentation de ses respectifs défunts importants, la structure en bois qui tient le toit avec une richesse de détails incroyable, les reliefs et plaques et images partout dans le sol, les éventuelles barrières qui protégeaient quelques parties spécifiques de la curiosité dédaigneuse des touristes, et encore quelques fidèles à prier leurs convictions. tout ça et mille autres univers à découvrir – avec un truc qui empêchait le fonctionnement habituel d’un œil. alors, je fais comme si de rien n’était, je l’ignore. vingt mètres parcourus, quelques images observés... putain, ça gratte. un affiche lu, encore vingt mètres… aaaaaargh. ça y est, j’en peux plus, je commence à mettre le doigt dans l’œil, sûr de savoir où il se cache, ce truc, mais la surface est glissante. j’essaie encore. n’étant pas un orifice habitué à recevoir des doigtées comme ça, il réagit mal, l’œil, et ils réagissent mal aussi, les autres, surtout la sécurité. allez, je pars aux toilettes. pour découvrir qu’il fallait passer partout avant d’y arriver, quelques deux-cents, trois-cents mètres les doigts incontinents à harceler l’œil. je m’arrête devant le miroir, je tire la peau d’en bas à l’aide du doigt majeur de la main gauche et j’y fous l’index de la main droite encore plus déraisonné, parce que bien repéré en action. cette espèce d’auto-agression poursuit son cours pendant quelques minutes, les passants me regardant avant et après leur activité aux chiottes. le corps étrange pas enlevé, même pas localisé, et pourtant sa présence restait bien perceptible. je jette l’éponge. deux-cents, trois-cents mètres pour revenir à la visite de celle qui est la plus grande église franciscaine au monde. l’œil continue à gratter, mais un peu moins avec la frénésie légèrement calmée et le visage lavé. je poursuis ma visite. trois heures et demie là-dedans, qui m’ont permis de fouiller pas mal ce qu’il y avait dans l’église avec le support d’un autre œil de substitution, l’appareil photo. une presque chute en marchant en arrière, soixante photos et une vingtaine de minutes de vidéo – en claire exagération des capacités technologiques – pour bien confirmer les clichés de la représentation féminine et y découvrir trois images de femmes qui se détachaient de la règle – à savoir: salomé, qui reçoit la tête de jean-baptiste sur un plateau ; la liberté de la poésie, qui aurait inspiré la statue de la liberté de new york quelques années plus tard et dont la photo ouvre ce texte ; et une troisième, non-identifiée, qui se présente comme immobilisée par deux hommes, le corps penché et les bras tenus derrière soi. mais déjà ? les gardiens de l’église, avec la disposition pas négligeable de fin de journée de travail dominical, commencent à expulser le public dans un effort joint et coordonné, initié par les extrémités. je flâne en les évitant au mieux de ma nonchalance, le cisco toujours dans l’œil. en cadeau de départ, lorsqu’ils empêchaient les visiteurs même de faire un dernier passage aux toilettes, les cloches sonnent les heures. petit à petit, tout le monde se met de dos à l’entrée et face aux tours où ils se trouvent, leur musique remplissant d’une force subtil sans égal l’espace du jardin latéral. je pense à faire une danse qui reproduit les images de l’intérieur, respectant les battements des heures pour changer ou évoluer dans les postures. une très belle idée sur l’instant, un air trop sacré juste après. en sortant de l’église, arrêté devant elle encore un petit instant, en quête de peut-être trouver quelque chose qui se cachait devant mes yeux dans la façade… elle était où cette poussière ? je regarde autour, je clignote des yeux, les paupières insistent et le globe bouge dans tous les sens. c’est parti.

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