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vii. ou oito—braços

uma galinha, perfeita

 

eu sou uma galinha. eu sou perfeita. um belo bico que muah-muah-muah pra todo lado, plumas dispostas de acordo com as ordens da natureza e com um agenciamento de cores que a vontade humana dificilmente seria capaz de produzir. os olhos, de lados opostos do meu rosto, fazem que o meu olhar seja de perspectivas laterais, com um ponto cego bem no meio, aquilo que se chama de frente, e as pálpebras que sobem em vez de descer para umidificar os globos oculares. meu baricentro é diferente do que você tem, pessoa que me lê, o que me dá uma centralidade diferente da cabeça e uma mobilidade bastante especial do meu pescoço prolongado. uma galinha, perfeita. uma bela cloaca coroa meu derrière e serve ao mesmo tempo pra transar, botar e cagar, sendo esta última talvez a mais frequente das minhas atividades. na verdade, não é só cocô, como acontece às aves, essa categoria da qual sou (grande) parte, meus excrementos reúnem xixi e cocô, daí o aspecto mais líquido, e é preciso lembrar que sua consistência pode dizer muita coisa sobre meu estado de espírito – igual a você, eu sou aquilo que como. enfim, perfeita, como uma galinha. minhas patas, uma amarela bem clara, a outra com um ligeiro tom esverdeado, que me renderam o apelido de bowie na adolescência, eu prefiro chamá-las de “pés”. eles têm duas bifurcações que desembocam em três dedos, com um quarto geralmente posicionado um pouco mais acima, como se você tivesse uma falange ou um indicador protuberante em cima do punho, avançando pelo antebraço, como um eco e também uma piscadela a meus ancestrais, os dinossauros. as asas, equivalentes aos teus braços, às vezes se agitam descompensadas, mas é só meu jeito de encontrar o equilíbrio e me adaptar ao meu centro de gravidade. era aí que eu queria chegar, a essa caralha de gravidade, que o dicionário e a vida em geral conectam a conceitos tão diversos quanto a austeridade, a dignidade, a majestade e o peso gravitacional. é ela que, apesar das minhas asas, apesar da minha posição de vedete entre os seres voadores, apesar do fato de ser emblema do antropoceno – que só não se chama galinoceno porque a culpa é obviamente de vocês, humanos – é ela, a gravidade, esse postulado de newton e da maçã caída, que me impede de voar, ou melhor, que condiciona e limita enormemente minha capacidade de planar nos ares. tem quem fale em gordofobia, essa estigmatização social que não tomo para mim, tão confortável que sou com minhas formas, e ocupando uma posição de privilégio bastante reconhecida – nós vivemos ao ar livre numa república de três, lemos wittig e haraway, temos um belo jardim à disposição, com uma gata e algumas humanas que trapaceamos e manipulamos ao nosso bel-prazer, uma pequena horta a detonar de tempos em tempos etc. e tal, uma situação muito muito diferente das minhas caras compatriotas destinadas a virar nugget ou cordon bleu nos departamentos de congelados deste mundão… tô perdendo o fio. as reticências, então, esses três pontinhos de suspensão, espécie de có-có-có, como quem dá umas bicotas, nada a ver com beckett, sim, eu estava falando de voo. eu posso voar, completamente, sou capaz de operar saltos bastante incríveis para o meu tamanho, consigo correr um bocado, perfeita, como eu ia dizendo há pouco, uma galinha. só que essa gravidade, agora em modo mais austero, faz de carniça minha possibilidade de migrar, de atravessar o oceano voando, de viver o sonho de uma vida sem fronteiras, de conhecer vários museus, gastronomias, costumes e culturas. não, tão logo atinjo alguns metros de altura, essa grande flecha invisível me devolve ao chão. posso insistir, insistir, insistir, atingir um novo recorde de altitude ou de tempo a planar do que os bilhões de galinhas do mundo, mas isso nunca representa grande coisa. você, por outro lado, tem a sensação de poder fazer isso com seu passaporte, uma conta de banco às vezes rechonchuda, um tapa-olhos para viajar, protetores auriculares, um porta dólares elástico escondendo sua fortuna perto do sexo… pensa só se fosse eu fantasiada desse jeito, o tamanho do ridículo. no entanto, por mais que você viaje, conheça o mundo e os mundos que o compõem, coma frango assado aos domingos, faça aulas de yoga e corra na beira do rio, transe três vezes por semana, se besunte com os melhores cosméticos disponíveis, leia coisas belas e críticas, salte de uma montanha de asa-delta, enfim, nada disso muda o fato que deixar o solo individualmente não está no seu repertório de possíveis e que, ao chegar em qualquer outro canto distante, vai haver um controle de passaporte. seu rosto nunca será lambido de maneira despreocupada pelo vento, seus sovacos nunca serão capazes de articular as omoplatas e a pele que as recobre de modo a enfrentar essa majestade, nunca nunquinha esse movimento virá a ser digno. não é nada muito distante da lógica do trabalho, por exemplo, dessa precarização tão disseminada que não é tão diferente assim da minha casa, o galinheiro. você tem a sensação de poder tanta coisa, mas não de nove às seis, não fora das férias. eu mesma, enquanto performer, tenho um sonho recorrente quando estou em processo de criação, geralmente em momentos de bloqueio: os elementos de trabalho estão todos ali e, repentinamente, me dou conta de que sou capaz de vencer a gravidade. primeiro são uns passinhos que depois se tornam saltos mais importantes, mas sempre muito lentos e que eu não consigo controlar nem esconder das pessoas em volta, até que finalmente fica óbvio que basta mostrar isso, ultrapassar a gravidade em cena e que isso por si só já será enorme. abro os olhos e minhas colegas continuam empilhadas à minha volta, sigo cercada de palha pra todos os lados, mas esse breve delírio me empolga mesmo assim. ou que nem quando você observa o espaço do alto da varanda do seu apartamento e, olhando lá pra baixo, é tomado pela vontade de pular. não um elã suicida, só mesmo essa vontade de deixar o solo, de sair voando ou simplesmente de olhar suas plantas da perspectiva do vizinho da frente. nein nein nein, igual ao yves klein e sua célebre montagem fotográfica, ou então o gino dominicis, o italiano obstinado que batia os braços por horas e horas esperando um dia conseguir voar, você não pode se abandonar no ar de uma certa altura sem virar uma massa deformada, uma bela panquecona bem espalhada no chão. o retrato é mais ou menos assim: bem dourada de um lado, chega a hora de virar sua omelete. seja com um gesto cuidadoso e o auxílio de uma espátula ou entregando seu melhor espetáculo de coordenação motora lançando-a nos ares, você segura bem a frigideira, conta um, dois, três e… opa, ela quebra. ah, vai cagar.

 

(ploft)

este texto faz parte

da publicação e performance

horror vacui

e se inspira do trabalho

de dança com galinhas

junto de marcelo evelin

cheek to chicken

vii. ou huit — bras

une poule, parfaite

je suis une poule. je suis parfaite. un beau bec qui picore de partout, des plumes disposées selon les ordres de la nature et d’un agencement de couleurs que l’envie humaine ne serait pas capable de produire. les yeux dans des côtés opposés de mon visage font de mon regard des perspectives latérales, avec un creux aveugle juste au milieu, ce qu’on appellerait le devant, et les paupières qui montent au lieu de descendre pour humecter les globes oculaires. mon barycentre est différent de celui que tu as, toi, la personne qui me lis, ce qui me donne une centralité autre de la tête et une mobilité tout à fait spéciale de mon cou prolongé. une poule, parfaite. une belle cloaque couronne mon derrière et me sert à baiser, pondre et chier, cette dernière étant peut-être une de mes activités la plus fréquente. en fait, ce n’est pas que de la merde, comme il arrive aux oiseaux, cette catégorie de laquelle je fais (grande) partie, mes excréments réunissent pipi et caca, d’où son aspect plus liquide, et il faut rappeler que sa consistance peut dire beaucoup sur mon état d’esprit – comme toi, je suis ce que je manges. bref, parfaite, comme une poule. les pattes, une jaune très claire, l’autre avec une touche légère de vert, qui m’ont valu le surnom bowie dans ma jeunesse, je préfère les appeler « pieds ». ils ont deux bifurcations qui donnent sur trois doigts, avec un quatrième normalement placé un peu plus haut, comme si tu avais une phalange ou un index protubérant au-dessus du poignet, avançant vers l’avant-bras, en écho et clin d’œil à mes ancêtres dinosaures. les ailes, équivalentes à tes bras, parfois bougent décompensées, mais il s’agit juste de ma façon de trouver l’équilibre et de m’adapter à mon centre de gravité. c’était là où je voulais arriver, à cette connasse de gravité, que le dictionnaire et la vie en générale relient à des concepts aussi divers que l’austérité, la dignité, la majesté et la pesanteur. c’est elle qui, malgré mes ailes, malgré ma position de vedette des êtres volants, malgré le fait d’être l’emblème de l’anthropocène – qui ne s’appelle pas gallinécène car la faute est bien évidemment à vous, les humains –, c’est elle, la gravité, ce postulat de newton et de la pomme tombée, qui m’empêche de voler, ou plutôt qui conditionne et limite énormément ma capacité de planer dans les airs. il y en a qui parlent en grossophobie, cette stigmatisation sociale que je ne prends pas pour moi, très à l’aise avec mes formes que je suis, et dans une position de privilège bien reconnue – on vit en plein air dans une collocation de trois, on lit wittig et haraway, on a un beau jardin à disposition, une chatte et quelques humaines qu’on tripote et manipule à notre gré, un petit potager à ravager etc., situation très très différente de mes chères compatriotes destinées à devenir nugget ou cordon-bleu aux rayons de surgelés de ce grand monde… je me perds. les réticences, alors, ces trois petits points de suspension, espèce de cot-cot-cot, comme qui becquette, rien à voir avec samuel, oui, je parlais de vol. je peux voler, tout à fait, je suis capable d’opérer des sauts assez incroyables pour ma taille, je peux courir pas mal, parfaite, comme je disais toute à l’heure, une poule, mais cette gravité, là plutôt en mode austère, charcute ma possibilité de migrer, de traverser l’océan au vol, de vivre le rêve d’une vie sans frontières, de connaître plein de musées, de gastronomies, d’habitudes et de cultures. mais non, aussitôt arrivée à quelques mètres de hauteur, cette flèche invisible me ramène par terre. je peux insister, insister, insister, avoir le nouveau record d’altitude ou de temps de planage parmi tous les milliards de poules du monde, mais ça ne fait jamais long feu. toi, par contre, tu as la sensation de le pouvoir avec ton passeport, avec une compte en banque parfois dodue, un masque de sommeil pour voyager, des boules quies, une pochette élastique cachée proche du sexe avec tes dollars… figure-toi si c’était moi déguisée comme ça, la taille du ridicule. pourtant, tu as beau voyager, connaître du monde et des mondes, manger du poulet rôti les dimanches, prendre tes cours de yoga et courir au bord de la rivière, baiser trois fois par semaine, t’enduire des meilleurs cosmétiques disponibles, lire des choses belles et critiques, sauter d’une montagne en deltaplane, enfin, rien ne change le fait que quitter le sol individuellement n’est pas dans ton répertoire de possibles, et que, en arrivant quelque part ailleurs, il y aura un contrôle de passeport. jamais ton visage ne sera léché insoucieusement par le vent, jamais tes aisselles ne seront capables d’articuler tes omoplates et la peau qui les recouvre de façon à contrer cette majesté, jamais ce mouvement ne sera digne. ce n’est pas quelque chose de très distante de la logique du travail, par exemple, de cette précarisation répandue qui n’est pas si différente que ça de chez moi, le poulailler. tu as la sensation de pouvoir tant de choses, mais pas de neuf à dix-huit, pas quand tu n’es pas en vacances. moi-même, en tant que performeuse, je fais un rêve récurrent quand je me trouves en processus de création, souvent dans des moments de blocage : les éléments de travail y sont tous et soudainement je me rends compte que je suis capable de vaincre la gravité. d’abord par petits pas, puis à travers des sauts plus importants mais toujours très lents que je n’arrive pas à contrôler ni à cacher des gens autour, et finalement c’est évident qu’il suffit de donner à voir ça, de dépasser la gravité sur scène et que ce sera déjà énorme. j’ouvre les yeux et mes copines restent toujours entassées à côté de moi, je suis toujours entourée de paille partout, mais ce bref délire m’épanouit quand-même. ou comme quand toi, tu observes l’espace du haut du balcon de ton appartement et, regardant en bas, l’envie te prend de juste sauter. pas un élan suicide, juste cette envie de quitter le sol, de prendre vol ou tout simplement de regarder la disposition de tes plantes de la perspective de tes voisins d’en face. nein, nein, nein, tel yves klein et son célèbre montage photo ou gino dominicis, cet italien obstiné qui battait ses bras pendant des heures et des heures en espérant réussir un jour à voler, tu ne peux pas t’abandonner dans l’air d’une certaine hauteur sans devenir une masse déformée bien étalée par terre. le portrait est un peu comme ça : bien dorée d’un côté, le moment est venu de tourner ton omelette. que ce soit en geste soigneux à l’aide d’une spatule ou en spectacle de coordination motrice en le lançant dans l’air, tu saisis bien la poêle, tu comptes un, deux, trois et, hop… elle se casse. ça fait chier.

 

 

(ploft)

ce texte fait partie

de la publication et performance

horror vacui

et s'inspire du travail

de danse avec des poules

mené avec marcelo evelin

cheek to chicken

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