o figo
fruto da figueira comum, árvore emblema da bacia mediterrânea, onde sua cultura é realizada há milênios, o figo não é uma fruta no sentido botânico do termo. é, portanto, considerado um pseudofruto, ou seja, uma infrutescência que concentra uma aglomeração de pequenos frutos oriundos da transformação de uma inflorescência em forma de urna, o sicônio, portador de uma abertura chamada ostíolo em uma extremidade e um pedúnculo na outra; entre esses polos, o receptáculo carnudo é composto pela polpa que contém os chamados aquênios, as sementinhas da carne do figo.
as duas mãos mobilizadas
em torno de um pequeno buraco
dispostas a se enfiar nele
a sutileza agressiva
de um rasgo iminente:
os polegares nas laterais
de seu opérculo
indicador e dedo médio
sustentam a haste
para abri-lo igualmente
bem na linha ou quase isso
de uma metade inventada
dessa fruta falaciosa
um corpo pronto a devorá-lo
sim, mas não só
aquilo que em português
se chama arreganhar
– rachar, fender (o fruto maduro),
mostrando as sementes
no seu interior –
e que não satisfaz quando
trocado ou traduzido apenas
por abrir ou revirar
o gesto de alguém
que devora um figo
como um paralelo
do que a arte é capaz de fazer,
seja a quem a recebe ou a produz
arreganhar a sensibilidade,
revirar a maneira de ver,
arregalar os olhos,
os modos de leitura do mundo
salpicar e sustentar
um pouco de imaginação
neste momento em que
o mesmo mundo
essa esfera onde estamos espetados
que se vê em constante esgotamento
e que nos esgota constantemente
o mundo, ele
o mundo, nós
parece cercear
tudo o que é imaginação
– nele, ela parece
não ter mais vez
mas não só
o figo que,
talvez devido a um problema,
uma vez mais, de tradução,
quiçá de omissão,
periga ser o fruto proibido
e o é de fato nalgum canto,
seja no renascimento
como entre judias e judeus,
como se, repentinamente,
um figo caísse
sobre a cabeça de uma pessoa
sonolenta ao pé de uma árvore,
mudando de uma só tacada
a descoberta da gravidade
e sua força
contudo,
mesmo em plena especulação
diz-se que suas folhas
sim, suas folhas
teriam servido
para esconder a nudez
de eva e adão
uma vez que os olhos deles
se abriram para o conhecimento,
vendo a si próprios desnudados
eles se puseram a costurar
uma após a outra
essas folhas
para fazer um cinto
e esconder aquilo
que se chama de sexo
ou que chama ao sexo,
mas não só
uma fruta às vezes reconhecida
como a imagem da vulva,
por seu desenho,
por suas formas,
pela maneira de comê-la,
por sua volúpia
ou então a mesma fruta
por vezes reconhecida também
como a imagem do escroto
envelope dos testículos
por seu desenho
por suas formas,
pelo seu porte
esse pseudofruto, uma vez mais
símbolo sexual
e confuso por excelência
cuja temporada coincide
com o momento de escrita
destas linhas
no hemisfério dito norte
e que, em italiano
– itália, terra de florença,
chama-se fico, no masculino,
e designa não só o fruto
como também um homem bonitão
e quando, passado ao feminino,
torna-se fica, figa
nada menos do que a vagina
ou uma linda moça
– “lindas moças”
diziam na entrada dos bordéis
em são paulo –
ou então um gesto:
o polegar se enfiando
entre o indicador
e o dedo médio curvados,
às vezes ofensivo
talvez por causa
da parecença clitoriana,
noutras um amuleto,
algo entre o tapa-sexo
que o revela
e um talismã,
tudo junto misturado
no corpo
que também é pensamento
da presença das mulheres
e uma micro talvez até
nanodemonstração
de sua importância maior
sim, mas não só
uma figura simbólica
do mediterrâneo
que não para de indicar
um oceano e um mar de distâncias
mais a impotência que vem junto
ao mesmo tempo alimento
e talvez também um convite
a apanhar frutos caídos
se lambuzar
entregar-se à voracidade
uma possível interpretação
contra o flagrante retrocesso
figo é o poema de abertura de florence
performance & publicação & mémoire de mestrado
do segundo episódio da série de síndromes geográficas
la figue
fruit du figuier commun, un arbre emblème du bassin méditerranéen, où sa culture se fait depuis des millénaires, la figue n’est pas un fruit au sens botanique du terme. elle est considérée, donc, un faux-fruit, c’est-à-dire, une infrutescence qui concentre une agglomération de vrais fruits issue de la transformation d’une inflorescence en forme d’urne, le sycone, porteur d’une ouverture appelée ostiole dans une extrémité, et d’un pédoncule dans l’autre ; entre ces pôles, le réceptacle charnu est composé de la pulpe, qui renferme lesdits akènes, les petits grains de la chair de la figue.
les deux mains mobilisées
autour de ce petit trou
dans la disposition de s’y enfoncer,
la subtilité agressive
d’un déchirement imminent :
les pouces sur les côtés
de son opercule,
index et majeur
soutiennent la tige,
pour ouvrir en égalité,
pile ou presque
à une moitié inventée,
ce fruit fallacieux.
un corps prêt à le dévorer, oui,
mais pas que .
ce qui en portugais
s’appelle arreganhar
– ouvrir, fendre (un fruit mûr),
donnant à voir
les grains de son intérieur –
et qui ne satisfait pas
traduit comme
ouvrir ou retourner.
le geste de la personne
qui dévore une figue
en guise de parallèle
à ce que peut faire l’art,
que ce soit à qui le reçoit
ou à qui le produit.
arreganhar la sensibilité,
retourner la façon de voir,
écarquiller les yeux,
les grilles de lecture du monde.
saupoudrer et soutenir
un peu d’imagination
en ce moment où
le même monde,
cette sphère où on est plantés,
qui se voit en constant épuisement
et qui nous épuise constamment,
le monde, lui,
le monde, nous,
semble assiéger
tout ce qui est imagination
– elle n’y trouve plus de place,
mais pas que.
la figue qui,
peut-être dû à un problème,
encore une fois, de traduction,
ou plutôt d’omission,
risque d’être
le fruit défendu
et l’est en effet quelque part,
dans la renaissance
comme chez les juives et juifs.
comme si, soudainement,
une figue tombait
sur la tête d’une personne
ensommeillée sous un arbre,
changeant d’un coup
la découverte de la gravité
et sa force.
pourtant,
même en pleine spéculation,
c’est dit que ses feuilles,
oui, ses feuilles,
auraient servi
à cacher la nudité
d’ève et adam.
une fois que leurs yeux
s’ouvrirent à la connaissance,
se voyant dénudés,
ils les ont cousues,
l’une après l’autre,
ces feuilles,
pour se faire une ceinture
et cacher ce qui s’appelle sexe,
ou ce qui appelle au sexe,
mais pas que.
un fruit parfois reconnu
comme l’image de la vulve,
par son dessin,
par ses formes,
par la façon de le manger,
par sa volupté.
ou alors ce même fruit,
parfois aussi reconnu
comme l’image du scrotum,
l’enveloppe des testicules,
par son dessin,
par ses formes,
par sa taille.
ce faux-fruit, encore,
symbole sexuel et troublé
par excellence,
dont la saison
coïncide avec
le moment d’écriture
de ces lignes
dans l’hémisphère dit nord,
et qui, en italien
– l’italie, terre de florence –,
s’appelle fico, au masculin,
et désigne non seulement le fruit,
comme aussi les beaux gosses
et, une fois passé au féminin,
devient fica, figa,
rien de moins que la chatte,
ou une belle fille,
ou encore un geste,
le pouce glissé entre
l’index et le majeur repliés,
parfois offensif,
peut-être à cause
d’une ressemblance
clitoridienne,
parfois une amulette,
quelque chose
entre cache-sexe
qui le dévoile
et porte-bonheur,
tout cela confondu
dans le corps
qui est aussi pensée
de la présence des femmes
et micro-, voire nano-démonstration
de son importance majeure,
mais pas que.
une figure symbolique
de la méditerranée,
qui ne cesse d’indiquer
un océan plus une mer de distances,
et l’impuissance qui vient avec.
à la fois un aliment
et peut-être une invitation
à ramasser des fruits tombés,
à se barbouiller,
à partir en voracité,
possible réinterprétation
contre une flagrante régression.
la figue est le poème d'ouverture de florence
performance & publication & mémoire de master
du deuxième épisode de la série de syndromes géographiques